Orgulho ou Vergonha? Isto não é um “Você Decide”—(por Joana Belarmino)


Tempo de leitura: 3 minutos

Uma cena lastimável tem povoado o debate nas redes sociais nos últimos dias. Num palco, a ex-primeira dama Michele Bolsonaro exorta à influencer e deputada federal pelo Partido Liberal, Amália Barros, a que retire sua prótese ocular, pois é assim que ela gosta de vê-la. Passivamente, a influencer entrega a prótese à ex-primeira dama, que sem qualquer cuidado, enfia o objeto no bolso da sua própria calça.

O vídeo vem repercutindo e causando indignação nos coletivos de pessoas com deficiência, bem como em diversos portais e redes sociais de formadores de opinião. Como privar uma pessoa com deficiência de sua prótese ocular, numa cena gravada que será depois exposta, e onde a ex-primeira dama mostrará que é inclusiva, que respeita as deficiências e que tem veneração por aquela mulher?

O deleite, o quase prazer experimentado por Michele Bolsonaro me faz lembrar dos antigos espetáculos dos séculos XVIII/XIX, quando pessoas cegas eram exibidas nas ruas e feiras,  em apresentações grotescas, onde eram chicoteadas e tratadas como alimárias, despertando o riso e a piedade dos transeuntes, e enchendo de moedas os bolsos dos seus exploradores.

O ocorrido também me fez lembrar de um outro debate que vem sendo travado no movimento de pessoas cegas. Na última assembleia da Organização Nacional dos Cegos do Brasil, ONCB,  seus dirigentes defenderam a ideia do “orgulho cego”, no seu documento público gerado pela assembleia, para nortear as lutas e a agenda do grupo.

A ideia tem causado um debate amplo, sobretudo nas redes sociais, e parece já ter formado duas trincheiras: A dos críticos e a dos defensores do “orgulho cego”.

Eu me alinhei ao lado dos críticos. Não creio que a palavra orgulho deva estar assinalada ao lado das nossas lutas por inclusão e cidadania. Tampouco definiria o termo orgulho para atestar a aceitação da minha condição sensorial. Defendo que a cegueira é uma experiência única para cada pessoa, e, na nossa sociedade, dependendo do contexto social onde se vive, o ser uma pessoa cega pode criar situações de profunda satisfação, mas, na mesma medida, situações de constrangimento, de angústia e de desvantagem, ao lado de muita frustração.

O certo é que a discussão é enviesada. Os defensores do “orgulho cego” acionam o sentido filosófico da palavra para defenderem sua ideia. Orgulho é assim, interpretado como brio, honra, é um valor positivo. Promovem uma espécie de antagonismo, ao afirmarem que aqueles que não aceitam a palavra orgulho ao lado da cegueira, na verdade, têm vergonha de serem cegos.

Indago, porém, esses não seriam sentimentos da ordem do indivíduo, do foro íntimo de cada um? Por outro lado, orgulho e vergonha podem ser contrapostos como antônimos? Reconheço que há pessoas cegas que por razões muito particulares, têm vergonha de serem cegas. Por outro lado, um grande número de pessoas cegas está plenamente de bem com a sua condição, porém, não diriam que sentem orgulho de serem cegas.

Minha cegueira é tão aparente, tão esplendidamente visível nos meus olhos piscantes e  na minha bengala branca, que seria uma covardia comigo mesma tentar mascará-la, não a aceitar, como uma das condições perenes da minha vida. Mas decididamente, não sinto orgulho ou vergonha por causa dela.

Fico pensando que,  se essa ideia progredir, o parlamento brasileiro será acionado para criar o Dia Nacional do Orgulho Cego. Nesse dia, multidões de pessoas cegas irão às ruas, exigir igualdade de direitos. Sem dúvida, esta será uma propaganda magistral em torno da cegueira. Me pergunto, porém, Quantas pessoas levarão nossa luta a sério? Quantas não se divertirão, tal  qual faziam os transeuntes dos séculos XVIII/XIX?

Hoje assisti ao vídeo em que a ex-primeira dama Michele Bolsonaro guarda a prótese de Amália Barros nos bolsos da sua calça. Juro que senti vergonha de ainda ser uma pessoa cega numa sociedade   em que pessoas se acham no direito de divertirem-se e tripudiarem de uma deficiência, para ficarem bem no filme, granjearem fama de que são inclusivas. Juro que senti vergonha assistindo a passividade da parlamentar, que luta para ser reconhecida como pessoa com deficiência, mas degrada a sua condição, ao permitir que parte do seu corpo, da sua identidade, lhe seja amputada em público, para um fingimento grosseiro sobre empatia e inclusão.

E vai aqui uma última reflexão: Os dirigentes da ONCB estão errados ao defenderem a ideia do orgulho cego? No meu entender, há aqui um aligeiramento da discussão. Como que uma tentativa de emplacar uma estratégia que tem sido acionada por outras minorias. Não creio que o orgulho cego tenha o condão de transformar a dura carapaça de uma sociedade capacitista e discriminatória. Acredito muito mais na luta para que nós cegos assumamos a bandeira do sujeito humano, da centralidade da pessoa, independentemente da sua condição sensorial ou física, Que enfrentemos as grandes lutas da sociedade, quais sejam, o combate à  miséria, à  desigualdade, ao genocídio das populações negras e indígenas. Com nossas bengalas, com nossa individualidade, se engrossarmos essa luta por uma sociedade cidadã, certamente deixaremos de ser vistos como alimárias, para estarmos no centro da história, fazendo uma história que nos orgulhe a todos.

 

Joana Belarmino é jornalista, editora do site do CNCLP.


32 respostas para “Orgulho ou Vergonha? Isto não é um “Você Decide”—(por Joana Belarmino)”

  1. Parabéns! Minha querida Joana,bem pertinente esse texto. Luta de direitos, respeito e igualdade em um todo. Me aproprio de um tema de um Cordel do nosso amigo Geraldo Feitosa “Onde reina o preconceito cidadão não tem direito”

  2. Joana,parabéns! Você foi brilhante ao relacionar estes dois episódios recentes, um grotesco, outro estapafúrdio. Ambos evidenciam a mesma dinâmica perversa de usar a deficiência para obter um ganho secundário, seja ele político, como na vergonhosa encenação das duas representantes da extrema direita, ou narcísico, como na carta da ONCB, que ainda não aprendeu a respeitar o coletivo de pessoas que pretende representar..

  3. A atitude da ex-primeira dama( primeira dama?!) e, o papel da _serva, a deputada monocular, agride em cheio a dignidade humana!

    Deselegante, patético, infeliz….

    Panfletagem rasteira…

    Quanto a idéia “DIA DO ORGULHO DE SER CEGO”, espero… q desapareça nas catacumbas das idéias infelizes…

  4. Fantástica e coerente fala amiga. Sigamos na lutar por todo/a/e/s, sem constrangimento e falsa inclusão e exposição na busca de se apropriar e beneficiar na exploração do outro

      • Olá Joana, também não tenho orgulho de ser cego, aceito bem a minha condição. Mas esta condição nos leva a desdobrarmos mais do que aqueles que enxergam E, para vivermos e sermos aquilo que queremos e quisermos ser.. E temos que respeitar também aqueles que não se sentem a vontade de serem cegos. Cada um tem seu riso e sua dor, sua história a ser respeitada.

  5. Não sou cego, mas trabalhei 40 anos com educação de crianças, jovens e adultos cegos e com baixa visão e tenho vários amigos nessas condições. Confesso que senti vergonha alheia tanto em relação à ex-primeira dama, pela atitude de expor e constranger uma pessoa com visão monocular, quanto à deputada que se submeteu àquela situação, que , como dá para entender, é comum entre elas.
    Tanto uma quanto outra também deveriam se envergonhar da cena grotesca que protagonizaram.

  6. Olá Joana, também não tenho orgulho de ser cego, aceito bem a minha condição. Mas esta condição nos leva a desdobrarmos mais do que aqueles que enxergam E. Para vivermos e sermos aquilo que queremos e, ou quisermos ser. Temos que respeitar também aqueles que não se sentem a vontade de serem cegos. Cada um tem seu riso e sua dor, sua história a ser respeitada.

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