Orcam My Eye e as Falsas Visões sobre a Cegueira


Tempo de leitura: 3 minutos

Por Joana Belarmino

Prefeituras e governos estaduais de diversas localidades brasileiras estão empregando somas consideráveis na aquisição dos óculos de leitura Orcam my eye, dispositivo criado por uma empresa israelita e comercializado no Brasi pela franquia “Mais Autonomia”.
A aquisição mais recente se deu em Porto Alegre, onde a Secretaria de Educação do município investiu cerca de um milhão de reais para a compra dos óculos para escolas do ensino fundamental e médio. A compra gerou reações críticas da parte de pessoas cegas, sobretudo educadores, que alegam a necessidade de aquisição de tecnologias bem mais básicas para a educação especial, a exemplo de linhas braille, dispositivos com leitores de tela, e até equipamentos de escrita manual, como regletes e punções.
Mas o que e o orcam my eye, e o que ele faz? O equipamento é composto por uma minicâmera, acoplada a um óculos, que fica no rosto do usuário. Um ocr, dentro da câmera, fotografa textos impressos para leitura, identifica cores, rostos e cédulas e códigos de barra. Tudo é informado ao usuário por uma voz sintética, e todas as operações se utilizam dessa leitura audível. Cada dispositivo é comercializado pelo valor de 14 mil e 400 reais, a preços de hoje.
O orcam my eye é apenas mais uma das múltiplas tecnologias assistivas voltadas para as pessoas cegas. Entretanto, as visões que orbitam em torno do equipamento, e que são difundidas em matérias jornalísticas, reportagens de tv e conteúdos diversos, vendem ilusões sobre o que a câmera pode fazer por uma pessoa cega. É comum ouvirmos afirmações do tipo: “Agora os cegos podem voltar a enxergar”, ou, “uma criança cega não precisa mais ler braille”. Ou ainda, “agora posso ver o rosto da minha filha”…
O entusiasmo é ingênuo. Em geral, pessoas cegas não querem enxergar. Adaptadas à sua condição, lutam por acessibilidade, respeito e dignidade, e querem ser vistas e tidas como cidadãs.
Privar uma criança cega da leitura e escrita braille, é como negar às crianças que enxergam, o acesso à leitura e a escrita manuscrita, ferramenta e legado fundamental do progresso da cultura humana.
Governos estaduais e prefeituras estão errados quando dispõem verbas importantes para aquisição do equipamento? O erro maior radica no fato de não se escutar os mais interessados, ou seja, os educadores, os usuários, as políticas de educação especial. O orcam My eye não pode jamais ser considerado um item de primeira necessidade no chamado quite básico de educação de crianças e adolescentes cegos. Os governos e prefeituras precisam antes suprir escolas e salas de recursos com materiais de escrita manual, linhas braille, dispositivos de cálculo e computadores e tablets com leitores de tela. Feita esta lição, e, ouvidos os educadores, pode-se sim, inserir o orcam my eye como recurso complementar, se houver verba excedente, e mais que isso, se houver políticas de utilização e manutenção do dispositivo, que, por sua natureza, é recomendado para uso individual.
Para educadores e usuários com deficiência visual das redes públicas de ensino, o que está sendo vendido como panaceia para as crianças e jovens cegos pode representar mais um óbice para a educação especial, o aprendizado do braille, tão indispensável ao processo ensino/aprendizagem desse público. Pesquisas dão conta de que adolescentes e jovens cegos têm cada vez menor domínio da escrita da língua, assim como da leitura em braille. Um alerta deve ser feito aos gestores públicos: Num quite básico de tecnologias assistivas, o orcam my eye está longe de ser um equipamento indispensável, visto que suas funcionalidades já encontram realização muitas vezes de custo zero, através de aplicativos como o seing ai,
Aplicativo gratuito da Microsoft, que realiza rotinas similares em Smar fones e tablets, somente para citar um exemplo bem-sucedido de tecnologia assistiva.
“Nada sobre nós sem nós”: Essa máxima, largamente difundida em discursos, lançamentos de campanhas de acessibilidade, eventos de pessoas com deficiência, está longe de ser exercitada nas redes públicas de educação do país, onde educadores, usuários e famílias de pessoas com deficiência, em geral não são ouvidas em decisões que certamente terão impactos de relevância ou não, no cotidiano educacional desses coletivos.

Joana Belarmino é jornalista e integra o Comitê Nacional Cegos com Lula Presidente


13 respostas para “Orcam My Eye e as Falsas Visões sobre a Cegueira”

  1. Bom dia
    Excelente texto. Na Adevis-NH estamos buscando um curso braille. Já ouvimos: para que braille? Ninguém usa mais. Com as novas tecnologias não precisa mais.Ledo engano. Estamos investindo.
    Importante novo textos esclarecedoras.

  2. Trabalho há mais de 30 anos na área e também concordo com o que foi dito na reportagem! Assim que adquirimos testei com várias pessoas e o relato foi exatamente este: “é muito caro para fazer a mesma coisa que meu celular faz” vamos investir no básico que como o nome já diz é BÁSICO!

  3. Parabéns, sem leitura braille não há formação de Cultura
    Precisamos de pessoas corajosas, esclarecidas, experienciadas na leitura e escrita braille gritem busquem essa verdade.

  4. Excelente texto da profa.Joana Belarmino; precisamos ter senso crítico diante das inovações que ao que parece tem o mercado como princípio, meio e fim. Vamos primeiro dotar as escolas públicas com a base de autonomia que o braille oferece; para depois quem sabe socializar os recursos tecnológicos que podem vir a somar; jamais subtrair.

  5. Comentarei e já repassei para os demais é caro porque tem toda uma tecnologia embutida até cão guia é caro, ter o intérprete de libras é caro e todos precisam ser amparados para ter independência e autonomia. Não é um bem comum ew sim um investimento de vida para a autonomia e independência da pessoa com deficiência e que o Estado nos deve esta assistência.

  6. Excelente reportagem! Precisamos ler, mas ler efetivamente. E para isso, até agora, só existe um jeito: o sistema Braille. Particularmente, investiria em uma linha Braille em vez desse equipamento. Nada contra, mas é preciso colocar as coisas em seus devidos lugares.

  7. Profª Joana Belarmino,excelente texto. em um cenário de escassez do básico na educação, investir recursos em uma Tecnologia Assistiva de altíssimo custo e uso individual, emdetrimento de outros recursos mais acessíveis e de domínio à maior parte das pessoas cegas, sem ouvir os principais interessados nem garantir a manutenção desse equipamento, é no mínimo, insensatez.

  8. Com relação ao Orcam, próteses de tudo, tradutor de libras, medicamentos em geral, inclusive colírios, cão guia, comida para o cão guia, tudo é imprescindível para a inclusão social e não é favor, pois esta inclusão está muito bem definida na LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO.
    O governo tem que pagar sim e não é o funcionário do governo que tem que achar nada, ele só tem que autorizar assim como assinam tudo para os criminosos e seus familiares.
    Aonde está a ASSISTÊNCIA SOCIAL DO INSS ? O BPC LOAS é um valor irrisório, só de ração para o cão guia custa por volta de R$ 300,00, um remédio, um colírio, tudo caro.
    Está tudo errado, os juízes que têm imóveis têm apartamento funcional, pago pelo erário e enquanto isso os deficirntes têm que esmolar para se incluir ou se cuidar ?
    Temos que mudar isso, pois representamos 24% dos votos.
    HELP, estão metendo a mão no dinheiro da inclusão dos deficientes.

    Opinião: Cezar Liper
    Cego monocular e tem Monoparesia
    Administrador de Empresas
    Analista de Sistemas
    Presidente do Instituto Lusófono de Inclusão Social – ILIS

  9. Prof. Dra. Joana Belarmino, esse documento relata com muita precisão às necessidades básicas que ainda temos na área da educação de crianças, jovens e adultos com deficiência visual no Brasil. Como educadora da área, reafirmo que o sistema braille é imprescindível e que a tecnologia assistiva complementa a educação especial.

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