A BOLA DA VEZ – POR GERALDO FEITOSA


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Se voltarmos o olhar para a nossa história, constataremos com uma inevitável ponta de decepção que ainda não nos livramos completamente da condição de país colônia, época em que estivemos completamente a reboque, ora da civilização europeia, ora da civilização norte americana. Sim, foram estas as duas sociedades que ao longo do tempo por aqui mandaram no pedaço, ditando a moda, implantando costumes, definindo comportamentos e estabelecendo padrões os mais diversos, alguns dos quais vigentes até os nossos dias.

 

A forma com que atualmente ainda se comporta a sociedade brasileira, em muitos aspectos, leva-nos a concluir que os 5 séculos de história por ela já vividos não foram suficientes para libertar a terra de Pindorama do processo de aculturação, que teve início nos idos de 1500 e que em muitos sentidos ainda perdura, mesmo em face da era da globalização. Diga-se de passagem que estas influências externas, assim como no passado, continuam se ramificando em todas as direções, podendo ser percebidas em vários setores do nosso cotidiano.

 

No que tange particularmente as pessoas com deficiência visual, o assunto do momento é a audiodescrição. Procedente dos Estados unidos, esta tendência vem gradativamente se consolidando como uma prática cada vez mais recomendada pelos especialistas da chamada educação especial, quando se trata de assegurar o acesso dos indivíduos cegos e com baixa visão a conteúdos predominantemente visuais, tais como: projeções cinematográficas, apresentações de peças teatrais, exibições televisivas, dentre outras modalidades do gênero.

 

O curioso é que tudo agora depende de audiodescrição, como se ela fosse o achado do século XXI, a “salvação da lavoura”, a bola da vez, sem a qual as pessoas com deficiência visual jamais pudessem acessar a informação ou interagir com o mundo da cultura. Como num passe de mágica, meia dúzia de afortunados beneméritos de repente aparecem como seres sobrenaturais, designados com a sublime missão de tirar das trevas todo um segmento que até então sequer tinha consciência de estar andando envolto nelas. A coisa é tão séria que já há até os que defendem a inclusão da audiodescrição como disciplina a integrar a grade curricular de cursos superiores. E haja especialização para os especialistas!

 

Naturalmente, nada temos contra audiodescrição propriamente dita. O que não podemos, no entanto, é deixar de nos preocupar com à forma pela qual vem sendo entre nós implantado este novo modelo de tecnologia assistiva, vez que foi idealizado “para”, e não por aqueles que viriam a ser os seus prospectivos usuários. Nossa automática adesão a este modelo, feita sem qualquer consulta às bases, além de representar a continuidade da nossa subserviência aos ditames da sociedade norte americana, nos parece algo profundamente autoritário, atitude que nem de longe se coaduna com o discurso defendido pelo nosso movimento organizado.

 

Por outro lado, o modelo de audiodescrição, da forma que vem sendo implementado, desconsidera o potencial das pessoas cegas, no que concerne à prática da abstração e da dedução, desde que a riqueza da sonoplastia é literalmente substituída pela monotonia de um narrador, o qual sob o pretexto de descrever uma paisagem ou um gesto, por vezes pode tirar toda a mística de uma situação. Ora, por que se ignorar, por exemplo, que o rádio veio antes da TV e que, portanto, as imagens que hoje se projetam apenas visualmente eram outrora projetadas para serem captadas por meio da audição, independentemente da pessoa ser cega ou normovisual? Sinceramente, não cremos que os protagonistas da audiodescrição ignorem a existência desses recursos. No entanto, é plenamente admissível que as questões mercantilistas estejam se sobrepondo à valorização humana de todo um segmento que, assim como no passado, precisa continuar escravo para assegurar a liberdade daqueles que se julgam seus superiores.

 

Neste momento, quando as nossas Organizações prestadoras de serviço se mobilizam para exigir do poder constituído a criação de mecanismos legais destinados à oficialização do uso desta ferramenta nos meios de comunicação, quando também se observa a criação de seletos grupos de “audiodescritores”, quase todos oriundos dessas mesmas organizações, ou por elas indicados, qual deverá ser a nossa posição? Podemos nos limitar simplesmente a aplaudir aqueles e aquelas que sempre se arvoraram ao direito de definir por nós, ou podemos questionar quais são os verdadeiros interesses que estão implícitos na concessão de tantas benesses.

Se optarmos pela coluna 1, provavelmente seremos contados como agentes de modernidade, pessoas de mente aberta e coisas do gênero, adjetivos com que se distinguem aqueles que sempre se colocam do lado da situação. Em contrapartida, se optarmos pela coluna 2, fatalmente viremos a ser rotulados como neófitos, ingênuos, retrógradas, ingratos, além de muitos outros distintivos que estão sempre reservados aos que ousam desafiar o sistema.

 

E agora? desafiaremos os nossos “benfeitores” e exigiremos que nos escutem, ou mais uma vez cruzaremos os braços e remaremos a favor da maré? Visto que já conhecemos os riscos envolvidos nesta escolha, vale lembrar especialmente aos defensores do “nada sobre nós sem nós”, que aceitar pacificamente as coisas do modo como elas se apresentam significa, em última instância, concordar com a opinião daqueles que dizem não ser nada fácil conviver com indivíduos que, além de falarem mais que o necessário, até então não haviam se dado conta de que também necessitavam de intérprete.

 

Geraldo Feitosa é Professor brailista, escritor, poeta cordelista e militante do movimento das pessoas com deficiência


9 respostas para “A BOLA DA VEZ – POR GERALDO FEITOSA”

  1. Interessante reflexão sobre a inclusão os recursos de inclusão à pessoa com deficiência visual. A sonoplastia, a música, apresenta histórias perceptíveis auditivamente.
    O importante é que as leis que surgiram contribuíram para uma sociedade de respeito rumo à inclusão.

  2. Parabéns Geraldo pelo excelente comentário! Tenho observado tudo isso que você disse e me preocupa muito o que estão fazendo com a áudio descrição para ganhar dinheiro. Ô a gente aguarda a inteligência artificial pra resolver tudo isso ou a gente começa a protestar.

    • Estimado Lucas, é muito preocupante quando se aponta a atuação de profissionais da acessibilidade meramente como exploradores de um mercado. Hora, se você precisa de uma casa, irá contratar engenheiros, arquitetos, etc. E, certamente pagará por este serviço. Todo e qualquer profissional que investe em conhecimento para atuar no mercado, recebe pelos seus préstimos. Daí, quando a atuação é para garantir recursos de acessibilidade, aí é errado, estão explorando, inclusive, as próprias pessoas com deficiência, neste caso, são exploradores?
      Desta forma, vamos nos manifestar para acabar com a atuação profissional dos tradutores e intérprete de Libras, dos professores de AEE e demais que atuam na educação especial/inclusiva, vamos acabar com os ledores, com os profissionais que atuam na adaptação de materiais e em tantas áreas da acessibilidade e inclusão das pessoas com deficiência.
      É preciso, sim, combatermos os verdadeiros charlatões, que se dizem profissionais da inclusão, pseudos audiodescritores. No entanto, aqueles que fazem um bom trabalho, que estudam, se dedicam e são responsáveis e buscam o empoderamento das pessoas com deficiência, esses devem ser muito bem remunerados, pois, este recurso, jamais será totalmente substituído pela inteligência artificial.
      Cordial abraço.

  3. Gostaria de propor uma reflexão a respeito do texto intitulado A BOLA DA VEZ – escrito POR GERALDO FEITOSA

    O autor nos apresenta um preâmbulo pouco fundamentado, justificando seu discurso por meio de um pseu·do imperialismo americano/europeu, desconsiderando o fato de vivermos em um mundo globalizado.
    No entanto, vamos nos ater ao tema central do referido texto.
    No que tange particularmente as pessoas com deficiência visual, o assunto do momento é a audiodescrição. Procedente dos Estados unidos, esta tendência vem gradativamente se consolidando como uma prática cada vez mais recomendada pelos especialistas da chamada educação especial, quando se trata de assegurar o acesso dos indivíduos cegos e com baixa visão a conteúdos predominantemente visuais, tais como: projeções cinematográficas, apresentações de peças teatrais, exibições televisivas, dentre outras modalidades do gênero.
    Neste trecho, o autor insinua que o Brasil simplesmente adotou a audiodescrição, como se fora um pacote Procedente dos Estados unidos. O mesmo ignora todo o trabalho de pesquisa e conhecimento construídos aqui em nosso país, como por exemplo, o Prof. Dr. Francisco Lima da Universidade Federal de Pernambuco, A Profa. Eliana Franco da Bahia, Os trabalhos e pesquisas realizadas na UFCE, entre tantos outros profissionais e pesquisadores.
    Em seguida, o autor aponta a audiodescrição aplicada, segundo ele, “chamada educação especial,” como que a educação especial não fosse algo, inclusive, normatizado em nosso país, mas, o bizarro são os recursos utilizados como exemplo: projeções cinematográficas, apresentações de peças teatrais, exibições televisivas, demonstrando o quanto o indivíduo conhece a respeito das questões relativas à educação inclusiva.
    Isso nem é tanto o problema, vejamos como ele simplesmente ataca deliberadamente e sem argumentos fundamentados este recurso de inclusão:
    O curioso é que tudo agora depende de audiodescrição, como se ela fosse o achado do século XXI, a “salvação da lavoura”, a bola da vez, sem a qual as pessoas com deficiência visual jamais pudessem acessar a informação ou interagir com o mundo da cultura.
    Todo e qualquer indivíduo que se arvore a escrever sobre qualquer temática deveria, minimamente, estudar um pouco a respeito do que se escreve, pois, vejamos:
    A áudio-descrição pode ser definida como uma técnica de tradução semiótica, que consiste transformar imagens, ou seja, tudo aquilo que se restringe aos recursos visuais, em palavras, as quais podem estar em diversos suportes, como por exemplo, escritas em Braille, em um livro didático, ou mesmo para serem lidas por um leitor de telas com sintetizador de voz, ou mesmo um terminal Braille, pode ser lida pela voz humana, traduzida para a Língua de Sinais Brasileira, para ser acessada por pessoa surdo-cega, em fim, a áudio-descrição não é a salvação da lavoura, como prega o autor do texto que discutimos, mas, um recurso a mais, sim, indispensável para o processo de inclusão das pessoas cegas e com baixa visão.
    O Sr. Geraldo Feitosa, prossegue em seu ataque:
    Como num passe de mágica, meia dúzia de afortunados beneméritos de repente aparecem como seres sobrenaturais, designados com a sublime missão de tirar das trevas todo um segmento que até então sequer tinha consciência de estar andando envolto nelas. A coisa é tão séria que já há até os que defendem a inclusão da audiodescrição como disciplina a integrar a grade curricular de cursos superiores. E haja especialização para os especialistas!
    É profundamente lamentável ler de alguém que se diz inclusivista, que atua pela inclusão das pessoas com deficiência visual chamar todos os profissionais, pesquisadores, formadores e demais envolvidos com este recurso, que se dedicam a pesquisar, sistematizar, e ofertar serviços de qualidades ao público que a áudio-descrição se destina de “meia dúzia de afortunados beneméritos, como se fossem meros aproveitadores. Sim, sabemos que em toda e qualquer atividade profissional, existem bons e maus profissionais, mas, o que o Sr. Feitosa faz, é simplesmente jogar todos no mesmo pacote, mais uma vez, sem qualquer argumento técnico.
    Depois de tudo isso, que não é o fim, ainda tem a descaratez de escrever:
    “Naturalmente, nada temos contra audiodescrição propriamente dita.”
    Já pensaram se ele fosse realmente contra o recurso?
    O que não podemos, no entanto, é deixar de nos preocupar com à forma pela qual vem sendo entre nós implantado este novo modelo de tecnologia assistiva, vez que foi idealizado “para”, e não por aqueles que viriam a ser os seus prospectivos usuários. Nossa automática adesão a este modelo, feita sem qualquer consulta às bases, além de representar a continuidade da nossa subserviência aos ditames da sociedade norte americana, nos parece algo profundamente autoritário, atitude que nem de longe se coaduna com o discurso defendido pelo nosso movimento organizado.
    Aqui, mais uma vez, há um enorme equívoco nos argumentos do autor, uma vez que, um dos principais difusores da áudio-descrição no Brasil é o Prof. Dr. Francisco Lima, pessoa cega, sem falar que tantos outros são sim protagonistas deste movimento atuando como pesquisadores, consultores e formadores de outros áudio-descritores.
    Infelizmente, o escrito segue, lamentavelmente, sem conhecimentos técnicos e fundamentação.
    Por outro lado, o modelo de audiodescrição, da forma que vem sendo implementado, desconsidera o potencial das pessoas cegas, no que concerne à prática da abstração e da dedução, desde que a riqueza da sonoplastia é literalmente substituída pela monotonia de um narrador, o qual sob o pretexto de descrever uma paisagem ou um gesto, por vezes pode tirar toda a mística de uma situação.
    Bem, infelizmente, nem todas as pessoas cegas ou com baixa visão tem o poder místico e da vidência, no sentido do poder da adivinhação que o autor do nosso texto possue. A técnica da áudio-descrição não é meramente uma locução ou uma descrição qualquer, despretensiosa, ela é estiada em diretrizes que buscam empoderar seu público a respeito de todo e qualquer evento visual com o qual interagimos.
    Afinal, qual a pessoa cega que consume conteúdos audiovisuais, nunca assistiu a um filme, série ou mesmo novela, cujo final é constituído meramente de imagens e uma trilha sonora e que esta pessoa só conseguiu saber o final porque alguém teve que lhe revelar posteriormente?
    Ora, por que se ignorar, por exemplo, que o rádio veio antes da TV e que, portanto, as imagens que hoje se projetam apenas visualmente eram outrora projetadas para serem captadas por meio da audição, independentemente da pessoa ser cega ou normovisual? Sinceramente, não cremos que os protagonistas da audiodescrição ignorem a existência desses recursos.
    Nossa, este argumento chega a ser engraçado, pois, a sociedade deveria ignorar todo e qualquer avanço tecnológico, comunicacional, entre outros e voltarmos a viver nas cavernas, nos comunicando por desenhos em suas paredes.
    No entanto, é plenamente admissível que as questões mercantilistas estejam se sobrepondo à valorização humana de todo um segmento que, assim como no passado, precisa continuar escravo para assegurar a liberdade daqueles que se julgam seus superiores.
    A valorização humana, a dignidade da pessoa, o respeito à inclusão e acessibilidade não tem absolutamente nada a ver com exploração de mercado. Profissionais que se preparam para exercer uma função ou atuar em qualquer segmento profissional devem ser respeitados, ou será que, pensando na benevolência e na caridade, quem atua na área da inclusão não deveria receber por suas práticas profissionais? A, não podemos ignorar que estas “questões mercantilistas”, mencionadas pelo autor, tornou-se um campo de atuação para muitas pessoas com deficiência visual, tornando-lhes também protagonistas desta história.

    Neste momento, quando as nossas Organizações prestadoras de serviço se mobilizam para exigir do poder constituído a criação de mecanismos legais destinados à oficialização do uso desta ferramenta nos meios de comunicação, quando também se observa a criação de seletos grupos de “audiodescritores”, quase todos oriundos dessas mesmas organizações, ou por elas indicados, qual deverá ser a nossa posição? Podemos nos limitar simplesmente a aplaudir aqueles e aquelas que sempre se arvoraram ao direito de definir por nós, ou podemos questionar quais são os verdadeiros interesses que estão implícitos na concessão de tantas benesses.
    Mais uma vez, o autor demonstra pleno desconhecimento a respeito do que escreve, pois, aqui, muito mais do que em outras áreas do conhecimento relativo às pessoas com deficiência visual, o nada sobre nós sem nós é aplicado, uma vez que diversas pessoas cegas e com baixa visão estão diretamente envolvidas neste movimento de regulamentações e legalizações.

    Mais uma vez, é profundamente lamentável ler esses argumentos de alguém que se diz um defensor da inclusão das pessoas com deficiência, de alguém que aparentemente construiu uma história e, certamente tem seu legado, mas, resolve simplesmente atirar na cabeça daqueles que usam, gostam e atuam profissionalmente com o recurso da áudio-descrição, simplesmente por sua opinião pessoal e jamais manifestação coletiva contrária ao recurso.
    Geraldo Feitosa é Professor brailista, escritor, poeta cordelista e militante do movimento das pessoas com deficiência
    setembro 18, 2023

    Milton Carvalho é mestrando em comunicação acessível pelo Politécnico de Leiria em Portugal e em Diversidade Cultural e Inclusão Social Pela Universidade Feevale, Brasil;
    É Secretário temático da Secretaria de Tecnologia e acesso à informação da Organização Nacional de Cegos do Brasil (ONCB);
    É consultor em acessibilidade com enfoque em tecnologias assistivas e em audiodescrição, com experiência em formação de áudio-descritores e em tradução visual de diversos produtos audiovisuais como filmes e documentários, exposições fotográficas e esculturas, teatro, dança, ópera, entre outras manifestações artísticas, eventos acadêmicos e outros eventos ao vivo, livros, catálogos, etc.

  4. Parabéns Geraldo!
    Você como sempre abordando assuntos de interesse de todos.
    Tenho muito orgulho de estar fazendo parte do rol da sua amizade.
    Você é cara!

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