Tudo Sobre Nós sem Nós: (Enio Rodrigues da Rosa)


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Considerando-se o próximo Dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência, dia 21 de setembro de 2023, eu quero sugerir uma reflexão, tendo em perspectiva o núcleo central contido na formulação de Nada sobre nós sem nós. Esta é apenas mais uma daquelas tantas formulações bem-intencionadas, de conteúdo interessante que também caiu na vala comum e perdeu o seu significado histórico original.

A primeira compreensão crítica da formulação “Nada sobre nós sem nós”, deve ser buscada nas histórias das civilizações humanas, com a intenção de encontrar a ponta do fio condutor utilizado para tecer e deixar gravadas todas as marcas negativas que ainda nos dias atuais continuam registradas nos corpos e nas mentes das pessoas com deficiência.

Nesta perspectiva histórica, pessoas com deficiência, são como gado marcado com ferro em brasa: depois do couro queimado, as cicatrizes nunca mais desaparecem. Deficiências são marcas esttigmatizantes gravadas nos corpos e nas mentes de pessoas que precisam carregar a dor e o sofrimento de cicatrizes que machucam muito mais o espírito, a consciência e a alma do que propriamente as partes físicas atingidas na corporalidade.
Com pequenas variações sobre as compreensões filosóficas, religiosas, culturais e práticas sociais, praticamente todas as sociedades humanas já investigadas, produziram, dispensaram e alimentaram através dos seus conjuntos de crenças, costumes, comportamentos e valores culturais, a ideia da invalidez, da incapacidade, da improdutividade, da inutilidade, do inservível, do imprestável, do defeituoso e de tantas outras formas negativas e pejorativas de adjetivações, que até hoje continuam presentes nas sociedades e nas cabeças das pessoas que por normas e padrões estabelecidos por elas mesmas, sempre se acharam e continuam se achando perfeitas e as únicas autorizadas e com legitimidade de falar e decidir, sobre temas, assuntos e questões envolvendo diretamente a vida das pessoas com deficiência.
Na formulação “Nada sobre nós sem nós”, portanto, está justamente embutida, interiorizada, incorporada, encarnada ou plasmada a ideia de que já não é mais aceitável e tolerável, que pessoas sem deficiência, pelo simples fato de continuarem julgando-se perfeitas, sejam elas as principais portadoras de fala sobre as pessoas com deficiência.

Mesmo naqueles espaços institucionais, governamentais e não governamentais, pensados e implementados com a intencionalidade de discutir, refletir, problematizar, propor e encaminhar propostas que possam estreitar ou encurtar a distância ainda existente entre pessoas com e pessoas sem deficiência, ainda é profundamente marcante o exercício do domínio das pessoas sem deficiência em relação as pessoas com deficiência. E isso não acontece apenas em termos numéricos, em relação a ocupação dos cargos, mas principalmente em relação ao direito de voz e o exercício do protagonismo.
Tomando-se apenas um desses espaços, se observarmos atentamente as composições dos conselhos de direitos, desde o nacional, os estaduais e municipais, talvez com raras exceções perdidas pelos quatro cantos deste país, vamos constatar que a grande maioria dos conselheiros e conselheiras, são pessoas sem deficiência que falam e decidem em nome das próprias pessoas com deficiência.

Esses conselhos são compostos por representantes governamentais e por representantes daquilo que comumente chamamos de sociedade civil organizada. Independentemente do número total dos conselheiros e conselheiras que compõem os conselhos, incluindo os governamentais e não governamentais, as pessoas com deficiência são sempre minorias numéricas e normalmente excluídas das funções mais importantes dos colegiados, a exemplo da função da presidência.
É importante deixar claro que estou trabalhando aqui com regra geral e não com exceções isoladas. Conheço pessoas com deficiência que exercem ou já exerceram (eu mesmo) a função de presidência desses colegiados.

Mesmo diante desta consideração, reitero que meu foco aqui é o nada sobre nós sem nós. Por isso, o ponto fulcral da minha reflexão, ou da minha provocação, reside justamente no fato incontestável sobre o quão as pessoas com deficiência ainda continuam sendo consideradas inválidas e incapazes de opinarem e contribuírem em assuntos que dizem respeito diretamente sobre a vida delas próprias. A questão da ocupação de cargos e funções é apenas um aspecto tangencial sobre uma questão de essência que reside na raiz dos processos históricos de exclusão.

Diante desta realidade ainda longe de ser alterada, por força de lei, pelo menos a presidência desses conselhos, deveria ser exercida somente por pessoa com deficiência, independentemente de governamental ou não governamental.
Colocar pessoas sem deficiência na presidência dos conselhos de direitos das pessoas com deficiência, pelo seu simbolismo, parece representar o mesmo que uma associação de feminista ou de defesa dos direitos das pessoas negras, respectivamente, colocar um homem machista e uma pessoa branca racista na presidência.

Este exemplo expressa o direito ou o lugar de fala de pessoas ou de grupo de pessoas que ao longo da história sempre tiveram negado o lugar e o direito de fala.

Este é justamente o pressuposto do nada sobre nós sem nós. A criação dos conselhos de defesa dos direitos das pessoas com deficiência, foi uma conquista dos movimentos das pessoas com deficiência, como resultado das memoráveis mobilizações do início da década de oitenta do século passado.

Porém, não vemos hoje concretizada a plena participação das pessoas com deficiência, de acordo com o lema do Ano Internacional das Pessoas com Deficiência, instituído pela Organização das Nações Unidas – ONU.

O que temos hoje é uma participação restrita, consentida, limitada, vigiada e punida, quando a crítica avança para exigir que o nada sobre nós sem nós seja efetivamente respeitado.

Constata-se que quando pessoas com deficiência, em nome do nada sobre nós sem nós, levantam-se e reivindicam seu lugar de fala, justamente pela negação do direito de poder falar sobre o que de fato interessa e atende a necessidade delas, elas são retalhadas e excluídas, justamente porque exerceram o seu direito de fala. O direito de fala das pessoas com deficiência está garantido, desde que elas falem o que as pessoas sem deficiência sempre permitiram que elas falassem.

Por isso, a situação das pessoas com deficiência envolve questões bem mais abrangentes, amplas, profundas e complexas. Por mais que haja esforços individuais e coletivos no sentido de efetivamente tornar as pessoas com deficiência iguais as pessoas sem deficiência, mesmo em termos de direitos formais, a realidade é que elas não são e não se sentem reconhecidas como iguais.
Esta reflexão avança para além dos direitos formais e entra no campo do reconhecimento das subjetividades humanas. Como subjetividades humanas, essas pessoas ainda são vistas pela sociedade como pessoas inválidas, incapazes, improdutivas e inúteis. A pior forma de preconceito e discriminação, ou de capacitismo, tomando-se emprestado um termo novo de conteúdo velho, esconde-se nas sutilezas das palavras e das ações, pensadas e realizadas com “muito amor e carinho” para as pessoas com deficiência. Como diz Fernando Pessoa, quem não sabe interpretar uma palavra, não sabe o que vai na alma.
Para ilustrar e subsidiar minha sugestão de reflexão crítica sobre o assunto, busco na filosofia de Axel Honneth, extraído de sua importante obra, Luta por Reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais (2003), alguns elementos teóricos que corroboram com as afirmações que estou deixando registrados nessas poucas linhas.

“…. a linha de pensamento de Hegel, inscrita nesse argumento, dá um passo importante para além da mera afirmação da teoria da socialização, segundo a qual a formação da identidade do sujeito deve estar vinculada de modo necessário à experiência do reconhecimento intersubjetivo; pois sua consideração implica também na ilação de que um indivíduo que não reconhece seu parceiro de interação como um determinado gênero de pessoa tampouco pode experienciar-se a si mesmo integral ou irrestritamente como um tal gênero de pessoa. Para a relação de reconhecimento, isso só pode significar que está embutida nela, de certo modo, uma pressão para a reciprocidade, que sem violência obriga os sujeitos que se deparam a reconhecerem também seu defrontante social de uma determinada maneira: se eu não reconheço meu parceiro de interação como um determinado gênero de pessoa, eu tampouco posso me ver reconhecido em suas reações como o mesmo gênero de pessoa, já que lhe foram negadas por mim justamente aquelas propriedades e capacidades nas quais eu quis me sentir confirmado por ele”.
Na realidade, as pessoas com deficiência continuam não sse sentnido sentido reconhecidas como gênero humano com as mesmas propriedades das pessoas sem deficiência. Igualmente, para as pessoas sem deficiência, as pessoas com deficiência continuam sendo pessoas estranhas, reconhecidas como gênero humano, mas com propriedades humanas inferiores, justamente pelas marcas negativas que carregam nos seus corpos e nas suas mentes.

Este abismo ainda presente, com tendência de aprofundamento, traz para o centro da reflexão crítica, questões complexas relacionadas com noção de reconhecimento e pertencimento. Se as pessoas com deficiência não se sentem reconhecidas como pertencentes do mesmo gênero humano com as mesmas propriedades das pessoas sem deficiência, se o inverso também é verdadeiro, então, o nada sobre nós sem nós, vai continuar sendo uma utopia num horizonte bastante distante.

Quando Candido Pinto de Melo, em 1982, no encontro de São Bernardo do Campo, sugeriu o dia 21 de setembro como o Dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência, por ser o início da primavera, talvez, ele tivesse em mente um futuro mais humanizado para seus companheiros e companheiras de luta.

Neste próximo dia 21 de setembro de 2023, do ponto de vista do engajamento e do reconhecimento da participação das próprias pessoas com deficiência nos espaços coletivos que resultaram daquelas lutas, as perspectivas não são nada animadoras. Enquanto algumas poucas pessoas com deficiência, por mérito ou porque conseguiram aproveitar a chamada igualdade de oportunidades, hoje, ocupam algumas posições de certo destaque na sociedade, o fato concreto é que milhões delas continuam excluídas, padecendo e sofrendo violações dos seus direitos mais básicos, por todos os cantos deste Brasilzão de meu Deus.

Se é verdade que temos formalmente a mais avançada legislação do mundo, segundo alguns/algumas estudiosos/estudiosas, também parece evidente que ainda existe uma enorme distância entre o dizer e o fazer. A legislação avançada contrasta com realidades e práticas ainda medievais, quando observamos determinadas relações sociais/culturais/religiosas, ainda existentes, entre pessoas sem deficiência e pessoas com deficiência.

Algumas pessoas conhecidas dirão que este negativismo é próprio do meu ceticismo. Outras dirão que tem a ver com o meu estado crônico de mal humor. outras, ainda, dirão que eu tenho um humor depressivo. Mas, tem aquelas que defendem que eu sou simplesmente revoltado porque ainda não aceitei minha cegueira.
De fato, eu sou mesmo um sujeito supostamente revoltado, mas não com a minha cegueira: com ela eu já aprendi lidar relativamente bem. Não pedi para ser cego, por óbvio, mas como ela já foi incorporada na minha personalidade integral, habitamos o mesmo corpo, o mesmo espírito (consciência) e vivemos sem maiores conflitos.

Minha suposta revolta reside no fato de que, não obstante o reconhecimento de que leis avançadas são importantes, mas quando os direitos formais não são traduzidos em ações concretas, que atendam as reais e verdadeiras necessidades das pessoas com deficiência, as leis não passam de letras mortas rabiscadas nas cartas de intenções.
Por isso, talvez ambas as pessoas estejam certas nos seus pesados diagnósticos, quanto as minhas supostas revoltas. A capacidade de indignação não deixa de ser uma forma psicológica de resistência contra a maneira como a sociedade ainda compreende e se relaciona com as pessoas com deficiência.

Enquanto o nada sobre nós sem nós não se torna uma efetiva e concreta realidade para as pessoas com deficiência, vamos convivendo e, por que não, aceitando passivamente o tudo sobre nós sem nós.

Para além dos possíveis quadros patológicos que eu carrego desde 13 de agosto de 1959, quando fui expulso do ventre de minha mãe, existe as realidades hostis, com as quais tive que lidar desde os meus 13 anos, quando iniciei o processo de perda da visão.
Entre 1959 e 2023, existem alguns anos de experiências. Neste intervalo considerável, aprendi que o problema maior não é e não está na minha cegueira e muito menos ainda na minha pessoa, individualmente falando. Do mesmo modo, também já aprendi e hoje reconheço que o problema não está nas pessoas com deficiência, se não numa sociedade composta majoritariamente por pessoas sem deficiência que continuam se achando perfeitas e melhores pelos simples fato de nãoii possuem “deficiências” aparentes nos seus corpos e nas suas mentes.

Com esta afirmação, não estou aqui propondo uma guerra aberta contra as pessoas sem deficiência. Aliás, muito pelo contrário. Eu só estou reivindicando, nos termos do artigo 5 da Lei Brasileira da Inclusão (LBI) Lei 13.146 de 2015, o direito de as pessoas com deficiência serem reconhecidas e respeitadas como sujeitos de direitos, no exercício da plena participação e da sua cidadania.
Honneth, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais / Axel Honneth; tradução de
Luiz Repa; apresentação de Marcos Nobre. — São Paulo: Ed. 34, 2003. 296 p.
Enio Rodrigues da Rosa É mestre em educação, professor da Rede Estadual de Ensino COEDE/PR.


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