PRESENTE DE GREGO – Por Enio Rodrigues da Rosa


Tempo de leitura: 4 minutos

Há um ditado popular que remonta aos primórdios da humanidade, segundo o qual de boa vontade o inferno está cheio.

Partindo-se deste pressuposto, devemos concluir que, se os reais e verdadeiros problemas  das pessoas cegas continuarem dependendo apenas das pessoas de boa vontade, as pessoas cegas vão continuar com os seus reais e verdadeiros problemas sem solução.

 

Utilizei este exemplo apenas para introduzir o polêmico assunto sobre a compra de 147 OrCam MyEye® pelo Governo do Estado do Paraná.

 

Quando a Secretaria de Inovação, Ciência e Tecnologia Digital elaborou o projeto e buscou o Conselho da Criança e do Adolescente – CEDECA para financiar a compra da ferramenta “milagrosa”, talvez tenha feito com as maiores das boas intenções.

 

Igualmente,  quando os conselheiros e conselheiras do CEDECA aprovaram o projeto sem a preocupação de consultar as organizações das pessoas cegas, as principais interessadas, também, talvez, tenham feito com as maiores das boas intenções.

 

Acontece que, neste caso, as boas intenções da Secretaria de Inovação, Ciência e Tecnologia Digital, junto com as maiores das boas intenções dos conselheiros e conselheiras do – CEDECA, custaram mais de 2 milhões de reais do Fundo, investidos numa ferramenta de tecnologia assistiva que não vai resolver os reais e verdadeiros problemas dos estudantes cegos.

 

Quando a empresa israelense desenvolveu a tecnologia assistiva denominada de OrCam MyEye®, talvez ela tivesse mesmo a boa intenção de contribuir com a autonomia das pessoas cegas. Porém, devemos lembrar que a empresa israelense desenvolveu, antes de tudo e de mais nada, uma mercadoria com a intenção de colocar no mercado e, com a venda da ferramenta, obter lucro. Nada demais, já que o fim de todos os negócios empresariais consiste na obtenção do lucro.

 

O mesmo raciocínio vale também para a empresa brasileira “Mais Autonomia”. Como empresa lucrativa que atua no mercado, ela vem investindo pesadamente na divulgação da sua mercadoria. Como o OrCam MyEye® é um produto extremamente caro, totalmente fora das possibilidades financeiras reais da enorme maioria das pessoas cegas brasileiras, a estratégia da empresa consiste basicamente em atuar no convencimento de agentes políticos que possuem acesso aos fundos e orçamentos públicos.

 

Por outro lado, o que é mesmo o OrCam MyEye®? Quando testei a ferramenta pela primeira vez, junto com outras pessoas cegas, eu percebi que existe uma grande distância entre a propaganda e as reais possibilidades de entrega do equipamento.

 

A ferramenta de tecnologia assistiva consiste basicamente em uma câmera fixada numa das hastes dos óculos que ficam no rosto da pessoa cega, conectada por um fio que fica ligado num aparelho que está preso junto ao corpo da pessoa, onde as imagens (fotos, etc.) e gráficos (letras de livros impressos, etc.), são convertidas em voz sintética, permitindo que a pessoa usuária da tecnologia, através da audição, tenha acesso às informações captadas pela câmera.

 

O uso adequado da tecnologia exige das pessoas cegas exercícios desgastantes de posicionamento da cabeça, a fim de localizar o ponto correto onde a câmera irá capturar as informações. Esta fadiga mental e corporal é um fator negativo importante que tem pesado contra o OrCam MyEye®, quando avaliado por pessoas cegas com conhecimento de causa e condição de comparar esta tecnologia com outras ferramentas que desempenham as mesmas funções com melhores resultados, que já estão disponíveis e são gratuitas.

 

Cada OrCam MyEye® foi vendido ao Governo do Paraná por mais de R$14.000,00 (quatorze mil reais). Fazendo um cálculo simples, com este valor seria possível comprar dois notebooks e dois celulares, de boa qualidade e com bom desempenho.

 

Com isso, em vez de atender apenas um estudante cego com um OrCam MyEye®, seria possível atender o dobro de estudantes, com duas ferramentas que são fundamentais e indispensáveis num sistema educacional cada vez mais digitalizado.

 

Por isso mesmo a pergunta: onde e no que o OrCam MyEye® será útil e conseguirá resolver os reais, verdadeiros e efetivos problemas enfrentados pelos estudantes cegos matriculados nas escolas pública, estaduais e municipais? Se uma das principais finalidades do OrCam MyEye® é converter informações gráficas (letras) contidas nos textos impressos e se os conteúdos escolares estão cada dia mais virtuais e digitalizados, como esta tecnologia assistiva poderá contribuir efetivamente na educação dos estudantes cegos? Esta é a dúvida que precisa ser respondida, com embasamento técnico, científico, pedagógico e educacional.

 

A enorme maioria dos estudantes cegos matriculados nas escolas públicas não conta com notebook ou celular, nem para uso em casa nem dentro da escola. Com essas duas ferramentas, ambas com leitor de tela disponível gratuitamente, os estudantes cegos poderiam ter acesso ao universo do mundo digital, através da Internet. O OrCam MyEye®, vendido por mais de R$14.000,00 não oferece nada disso.

 

A Secretaria de Estado da Educação – SEED, por meio do Departamento de Educação Inclusiva – DEIN, afirma que apenas recebeu os 147 equipamentos da Secretaria de Inovação Científica e Tecnologia Digital. Afirma também que avaliou positivamente o uso do OrCam MyEye® pelos estudantes cegos da rede.

 

Bem, diz um ditado popular que “A cavalo dado não se olha o dente”. Como veio de graça para o DEIN, “bora lá” com a distribuição dos óculos. Eles serão repassados para os estudantes, mediante a assinatura de um termo de responsabilização por parte da família, no caso dos menores de idade. Provavelmente, a família ficará também responsável pela manutenção do equipamento, no caso de estrago ou quando o mesmo deixar de funcionar.

 

Como conclusão dessas breves linhas, apenas mais três considerações. Em primeiro lugar, com os mais de 2 milhões de reais  do Fundo da Criança e do Adolescente, seria possível equipar os cinco CAPs – Centro de Apoio Pedagógico às Pessoas cegas ou com Baixa visão, mantidos pela SEED/DEIN. Esses Centros funcionam em condições precárias por falta de equipamentos básicos, como impressoras Braille, computadores e outros recursos materiais. Seria possível também renovar os equipamentos das salas de recursos da área da deficiência visual que funcionam nas escolas públicas estaduais.

 

Em segundo lugar, ironicamente falando, resta saber se os gregos foram espertos com o plano ou se os troianos foram ingênuos quando aceitaram e recolheram o cavalo de pau para dentro da sua fortaleza. Eu só espero que o OrCam MyEye® não vire um presente de grego para os estudantes que serão agraciados com os dispositivos.

 

Em terceiro lugar, dentro do lema “Nada sobre nós sem nós”, da próxima vez apenas sugiro, para que o dinheiro público seja mais bem utilizado e aproveitado em coisas mais úteis, que as pessoas de boa vontade e cheias de boas intenções consultem as pessoas cegas que  conhecem as mais diversas e variadas tecnologias assistivas que hoje estão disponíveis (reafirmo: gratuitamente), antes de caírem no mesmo erro dos troianos, quando aceitaram ingenuamente o  presente dos gregos.

 

Enio Rodrigues da Rosa

É professor pedagogo da Rede Estadual de Ensino, Diretor do Instituto Paranaense de Cegos – IPC e conselheiro do Conselho Estadual dos Direitos das Pessoas com Deficiência – COEDE/Pr.

 


3 respostas para “PRESENTE DE GREGO – Por Enio Rodrigues da Rosa”

  1. Excelente reflexão. Parabéns!! E por que será que o COEDE não foi procurado? ($$$$)…” Nada sobre nós, sem nós” sempre.

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