Normalidade x Diferenças: Refletindo sobre os Dois Conceitos


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(Por Geraldo Feitosa)

 

A tão sonhada revolução cultural, imprescindível na busca por uma sociedade solidária, terá seu grid de largada determinado no dia em que os educadores conseguirem verdadeiramente entender o peso que têm certos vocábulos e, sobretudo, assumirem o papel de mudar suas práticas no que diz respeito a utilização dos mesmos.

 

Nossa sociedade, embora falante em sua grande maioria, ainda não atentou para a força transformadora que emana da palavra, não se dando conta do poder que  tem esta para edificar ou destruir,  desqualificar ou exaltar, criticar ou aplaudir, decidir ou protelar.

 

Pródigo no que se refere a  adoção de novos termos, o idioma português do Brasil coaduna-se perfeitamente com a prática do falar coloquial, refletindo-se cotidianamente nas conversas informais, nas discussões científicas promovidas pelas instituições acadêmicas em todos os níveis, nos inflamados discursos proferidos a partir dos púlpitos e dos parlamentos, os quais, por sua vez, são devidamente corroborados pela mídia, seja ela escrita, radiofônica ou televisiva. Em todas essas instâncias de comunicação, é possível perceber o uso frequente de expressões verbais aparentemente ingênuas, mas que por outro lado apontam para a confirmação de práticas preconceituosas, muitas das quais determinantes do comportamento social vigente, ratificando os escritos bíblicos quando afirmam: “a boca fala do que o coração está cheio”. (Lucas 6:45-B)

 

Dentre as muitas expressões utilizadas aparentemente sem qualquer dolo, destacamos uma, como alvo desta análise, cuja importância se faz notar pela frequência com que é proferida por todos os que integram os diversos segmentos de nossa sociedade, independentemente da condição política, social ou econômica em que estejam inseridos. Trata-se da palavra NORMAL, para a qual chamamos a atenção dos nossos leitores, que a exemplo de tantas outras pessoas, por certo também a utilizam amplamente no seu falar cotidiano.

 

Apesar de conter apenas duas sílabas, esse termo tem importância capital no nosso dia a dia, pois, a depender da forma com que é utilizado, tanto pode apresentar um significado extremamente positivo, quanto expressar o que de mais negativo existe, especialmente quando sua aplicação tem como alvo o campo da antropologia.

 

Analisando-se primariamente sob o ponto de vista da semântica, observa-se que a palavra NORMAL se apresenta com duplicidade de significado. O primeiro deles está diretamente relacionado com aspectos legais, pois normatizar algo, seja de caráter pessoal ou institucional, significa literalmente estabelecer regras ou regulamentos para a sua melhor funcionalidade. Sob esta óptica, a expressão em foco, além de positiva, parece quase imprescindível, especialmente se se levar em consideração a índole dos seres humanos, cuja necessidade de viver em grupo exige o estabelecimento de regras de convivência, capazes de assegurar o respeito à singularidade de cada indivíduo, bem como sua pluralidade no que concerne ao exercício do livre pensar.

 

De outro modo, a palavra NORMAL assume uma maior abrangência. Embora se apresente desassociada de aspectos relacionados às questões de legalidade, mas ainda assim sem perder de vista o seu caráter definidor, a aplicação deste termo em diversas situações do cotidiano, acaba por gerar profundos conflitos, notadamente quando rebate no campo da antropologia.

 

Se, em tese, há total concordância em relação a esta teoria, na prática o que verdadeiramente acontece é bem diferente, decorrendo daí o principal motivo para a existência dos aludidos conflitos, vez que, apesar de sermos signatários da maioria dos documentos internacionais que versam sobre o tema da inclusão social, nossas atitudes cotidianas ainda se encontram profundamente atreladas a valores culturais retrógrados, muitos dos quais erigidos sob forte influência de antigos dogmas religiosos, pressões políticas, econômicas, além de muitos outros fatores ligados a diversos fenômenos socioculturais. Some-se a isto o fato de ser a nossa estratificação social relativamente jovem, algo que por certo também contribui para a proliferação dos mitos e preconceitos que culminam com a ratificação de muitos estigmas, dentre estes destacando-se o paradigma da “normalidade” como sendo um dos mais difíceis de serem desarraigados.

 

Visto ser a heterogeneidade uma das principais características dos seres humanos, é imperativo que estes possam ter suas questões entendidas a partir do respeito às suas próprias individualidades, e não enquadradas dentro de padrões previamente estabelecidos conforme pretende o sistema.           Ainda que os argumentos utilizados para justificar tal enquadramento possam parecer inocentes ou até mesmo meritórios, o fato é que já não se pode admitir que, em plena reta final do período considerado como a “era da inclusão”, tenhamos ainda que conviver com a perspectiva de classificação dos indivíduos em dois grupos, os normais e os anormais.

 

Aliás, é precisamente contra esta classificação que o presente texto claramente se insurge, pois a tendência de homogeneizar o comportamento dos sujeitos inerente  a mesma, acaba por desconsiderar literalmente o maior traço de igualdade existente entre estes, as diferenças, e consequentemente por trazer sérios entraves ao processo de evolução social das pessoas com deficiência de um modo geral, e particularmente dos indivíduos cegos e com baixa visão.

 

Embora jamais assumido, porém amplamente difundido, e mais que isso, sistematicamente praticado tanto verbal quanto  através de atitudes em todas as nossas esferas sociais, o paradigma da normalidade ainda exerce grande influência inclusive entre os educadores, refletindo-se hora no linguajar que utilizam, hora nas hipócritas posturas de assumida incompetência, hora na procrastinação de oportunidades, que bloqueiam o acesso das pessoas com deficiência ao saber sistematizado e consequentemente ao exercício da cidadania plena.

 

Como se vê, o segundo significado da palavra normal, mais do que abrangente, é determinante de um modelo que objetiva homogeneizar os indivíduos, tratando as suas diferenças como fatores característicos de inferioridade. Daí, a urgência de uma tomada de consciência por parte da nossa sociedade no tocante a utilização de tão importante vocábulo, pois conforme demonstrado acima, a sua aplicação tanto pode ser bastante útil, quanto extremamente danosa, hora dependendo do contexto, hora dependendo do elemento a que esta se destina. Se por um lado, considera-se de suma importância a normatização de determinadas situações do cotidiano, por outro, é absolutamente inaceitável conviver-se com o princípio da normalização, posto que o estabelecimento de padrões, do ponto de vista físico, mental ou sensorial, flagrantemente desrespeita o princípio da heterogeneidade, primordial característica inerente a todos os seres humanos.

 

“Normatizar é preciso, normalizar é inadmissível”.

 

Geraldo Feitosa é Poeta Cordelista, escritor de crônicas e Romances, Professor de Língua Portuguesa, professor Brailista e Analista de TIC

 


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