A Leitura Braille Nunca Sairá das Mãos das Crianças Cegas


Tempo de leitura: 3 minutos

(Por Joana Belarmino)

 

O Jornal Nacional da Rede Globo do último sábado exibiu uma reportagem sobre a aquisição dos óculos OrCam MyEye para crianças cegas e com baixa visão, do ensino fundamental das escolas municipais de Porto Alegre. A repórter traz à cena uma narrativa otimista, ilustrada pelos depoimentos de crianças e da professora de uma das escolas. O enredo é de salvação. A criança cega poderá ler seus livros em pé de igualdade com os colegas, também identificará rostos e terá autonomia para compras em supermercados.

Tenho certeza de que os educadores que sabem da importância do braille, como eu, ficaram desolados com a publicidade ali embutida. Entretanto, a reportagem traz várias narrativas subliminares que habitam o imaginário cultural da sociedade e, porque não dizer, estão presentes na mente dos agentes de muitas escolas.

A primeira dessas narrativas foi verbalizada pela professora entrevistada, que acha que a educação inclusiva dá trabalho. Trabalho para adaptar materiais, trabalho para desenhar e tornar acessíveis os mapas, trabalho para imprimir os materiais de leitura em braille.

Terei de dizer à professora que esses trabalhos não serão suprimidos com a aquisição do OrCam. Mas deixem-me falar de uma segunda ilusão embutida naquela reportagem. A repórter apresentou os óculos como uma das tecnologias mais avançadas do mundo. Há aqui um excesso respeitável na apreciação. O OrCam MyEye é desenvolvido por empresa israelita, que comercializa o produto desde a segunda década deste século. Até aqui, colocou dois modelos no mercado. O primeiro era constituído pelos óculos e pelo dispositivo da câmera, que ficava pendurado ao pescoço do usuário. O segundo e definitivo modelo traz apenas os óculos, que têm acoplada uma minicâmera de escaneamento e reconhecimento.

Quando indagamos aos vendedores sobre o futuro do projeto, eles nos dizem que este modelo já se acha plenamente desenvolvido, que já não há necessidade de atualização.

Eu utilizo o OrCam para leituras e considero que os óculos cumprem bem essa funcionalidade. Mas, conforme frisei em matéria anterior, não se trata de leitura braile e sim de leitura audível. Um adulto cego que passou por alfabetização em braille e já faz ou concluiu formação superior pode ter no OrCam uma tecnologia complementar para suas modalidades de leitura.

O que acontecerá, porém, com uma criança cega, se a escola retirar o livro braille das suas mãos e lhe entregar o OrCam? Esta será uma tragédia sem precedentes. As escolas formarão, então, exímios escutadores de livros, que não saberão escrever, não dominarão regras gramaticais nem experimentarão o prazer em tocar e compreender palavras, parágrafos, textos inteiros em braille.

Será que a professora entrevistada sabe que já existem equipamentos muito melhores que os óculos para uma criança cega? As linhas braille, comercializadas no Brasil por algumas empresas, fariam melhor o trabalho de formação do leitor/escritor infantil. Ele leria em pé de igualdade com seus colegas, sem precisar de fone de ouvido, e, de quebra, seu cérebro trabalharia no aprendizado das regras gramaticais e da forma correta de escrita das palavras.

A escola poderá objetar que uma linha braille é muito cara. Eu digo que modelos muito bons já podem ser adquiridos pelo mesmo valor do OrCam. Esses equipamentos têm alta durabilidade de bateria, têm autonomia para cartões de memória e pen drive e, nos modelos mais novos, conjugam braille e leitor de voz, além de se conectarem à Internet.

Para a professora que se preocupa com o trabalho da adaptação de mapas, assim como da produção do texto braille, é bom informar que esses processos já estão completamente automatizados, através das impressoras braille. Há que se perguntar, porém, por que será que uma secretaria de educação decide empregar um milhão de reais na aquisição de óculos, quando poderia custear também e, principalmente, equipamentos como linhas e impressoras braille?

Torço realmente para que os alunos de Porto Alegre não fiquem frustrados com seus óculos. Torço para que a baixa durabilidade das baterias e a leitura descartável não venham a se constituir empecilhos para a educação inclusiva. Torço realmente para que a leitura em braille nunca seja arrancada das mãos de crianças cegas. Que elas sempre possam tocar nos mapas em relevo. Torço para que haja mangás em braille, porque, com o OrCam, o menino que está perdendo a visão vai ter muita dificuldade para uma leitura compreensível dos quadrinhos japoneses.

 

Joana Belarmino é jornalista, professora de jornalismo, editora do site do CNCLP.


15 respostas para “A Leitura Braille Nunca Sairá das Mãos das Crianças Cegas”

  1. Como é importante essa colocação. Eu pensei a mesma coisa. Aquela professora não tem nenhum compromisso com os alunos deficientes, ela vê a maneira mais fácil pra eles não terem que se adaptar ao braille. É uma preguiça de se adaptar. Eu fiquei muito preocupada. Ainda bem que a audiência dessa porcaria de Rede de Televisão perdeu bastante audiência. Que isso não seja empregado em todas as cidades. Seria o caos .
    MINHA FILHA AMA A LEITURA .
    Parabéns pela colocação.

  2. Concordo plenamente com a Joana!!
    Tenho uma filha deficiente visual total e optei por comprar a linha braille, pois assim, ela continuaria digitando e lendo o braille…
    Destaco, em tempo, que o Orcam my eyes não funciona tão bem assim como falam… bacana a iniciativa dele, mas muito limitado ainda…

  3. Ótima observação eu também percebi, tenho comércio atendo várias pessoas desde analfabetos até surdos e mudos e tenho um amigo deficiente visual,estou querendo aprender libras e braille é um passo para o futuro e respeito aos meu clientes, alguns sinais eles me ensinaram, mas acho desconfortável atende-los pelo WhatsApp, vou me esforçar e esse ano ir atrás. Parabéns pela observação.

  4. O óculos é mais uma ferramenta, mas o braelle é a essência , a raiz se a tirar morrer. Não podemos permitir tamanha falta de respeito em imaginar sequer se essa possibilidade existirá.

  5. Há de se dizer que existem centenas de audiolivros. Nos na Associação temos vários. Tem crianças nossas que baixam livros no celular. Mas e a escrita? Lembro que falava um dialeto alemão, razoavelmente bem. Mas e daí? Para escrever o que falava, nem pensar. Vi um livro no dialeto, fiquei doido, não consegui ler. Penso algo parecido, caso as pessoas não aprenderem Braille.

  6. Joana, parabéns! Devemos informar os pais e professores de pessoas com deficiência visual para que a alfabetização em Braille seja utilizada. Sou Professor Universitário e cego. Fico à disposição! Abraço!

  7. querida Joana, perfeito! Precisamos informar sobre todas as tecnologias. principalmente a grande importância do sistema braille para a escrita e a leitura das pessoas cegas. infelizmente, o mercantilismo Realiza a divulgação de produtos e recursos como se fossem a salvação. infelizmente a falta de informação sobre A importância do sistema braille e das diversas tecnologias que estão Disponíveis. É inadmissível que profissionais especialistas na área da deficiência visual e gestores venham cometer equívocos. Assim, nossos estudantes com deficiência visual tem grande prejuízo. Precisamos estar sempre atentos. Obrigada pela informação vamos compartilhar a informação

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