Audiodescrição – A Sutileza do Elefante (por Lêda Lucia Spelta)


Tempo de leitura: 3 minutos

Não sabia o que me esperava quando decidi assistir àquela peça: “O Homem Elefante”. Não conhecia o filme, não tinha lido a crítica, nem o livro, nem mesmo uma resenha. Sabia vagamente que se baseava num fato supostamente real, ocorrido no século XIX na Inglaterra, a vida de um homem que havia nascido com deformidades terríveis, que faziam-no assemelhar-se grotescamente a um elefante. Mas enfim, o teatro não era longe da minha casa, o horário era conveniente e, o mais importante, teria audiodescrição! Não daquelas que não merecem este nome, que temos em alguns filmes da TV. Seria uma de verdade, feita por quem sabe fazer com sensibilidade e competência.

 

Meu espanto começou já na sala de espera. Acabava de tomar um café, quando ouvi alguém anunciar, num tom que mais parecia o de um apresentador de circo, algo mais ou menos assim:

_ Senhoras e senhores! Todos estão convidados para um espetáculo raro e impressionante, uma coisa realmente terrível e fantástica! Será exibido, para todos quantos queiram ver, um homem com feições de elefante! Não, senhoras e senhores, não se trata de um truque, de ilusionismo, é uma monstruosa aberração real! Imperdível! Venham todos!

 

Naquele momento, percebi que estava diante de um espetáculo diferenciado. Em menos de dois minutos, eu havia sido desalojada da confortável posição de espectadora e arremessada dentro do drama. Passara, em instantes, de simples plateia de uma peça teatral, para espectadora” de um espetáculo sórdido e abusivo.

 

Porém meu espanto não parou por aí. Ao entrar na sala do teatro, que aliás eu já conhecia, deparei-me com uma nova organização do espaço, onde o que viria a ser o palco, estendia-se como um comprido corredor, que passava pelo meio do público. Essas coisas, porém, eu só ia entendendo graças à audiodescrição, que começa sempre antes do terceiro sinal, descrevendo o palco e o ambiente.

 

À medida em que o drama se desenvolvia, eu ia ficando cada vez mais envolvida. Cada vez mais identificada com o protagonista e mais chocada com a tragédia que foi a sua vida, em virtude da sordidez do ser humano, ou melhor, do ser desumano. Mas, a que ou a quem atribuir este mérito? À qualidade do texto? Do roteiro da peça? Do diretor? Dos atores? Da audiodescrição? Ops! O que está acontecendo com o Rodrigo?

 

Rodrigo, que eu já conhecia de longa data, é um excelente audiodescritor, inclusive por ser também ator. Não estou querendo dizer com isso que o audiodescritor deve interpretar os personagens. De jeito nenhum; o trabalho dele é outro. Porém, a imparcialidade do audiodescritor não pode quebrar o clima da cena; ou seja, ele não pode descrever um documentário sobre retiros de monges budistas da mesma forma que descreveria o carnaval da Sapucaí…

 

Voltando ao Rodrigo, comecei a reparar que, à medida em que a peça ia se aproximando do seu ápice e eu ia ficando mais emocionada, o tom da audiodescrição ia se tornando mais delicado e profundo, mais afinado com o clima da cena, ou ao menos com a minha percepção do clima da cena. Era tão sutilmente intenso que, quando tudo terminou, eu chorava copiosamente.

 

Acho que fui a última pessoa da platéia a deixar a sala. Chorei, ali sentada, por todas as intolerâncias, preconceitos e crueldades em relação às diferenças. Chorei pelos meninos que me apaixonei na adolescência e que jamais me viram como mulher. E chorei pelo menino de rua, que só queria me ajudar, mas que minha amiga pensou que ia me assaltar… Chorei como vítima e como algoz dessa tragédia humana em que vamos desempenhando nossos estreitos e primitivos personagens, no que se refere ao amor, à generosidade, ao respeito, à compaixão… Geralmente sem nos darmos conta, às vezes não querendo nos dar conta… Sobram poucos momentos de lucidez. Aquele era um deles; que certamente contribuiu para que me tornasse mais atenta, sensível e cuidadosa. Mas nada disso teria sido possível se não houvesse aquela excelente audiodescrição…

 

Lêda Lucia Spelta é psicóloga, analista de sistemas, consultora em acessibilidade digital e editora do site do CNCLP.


12 respostas para “Audiodescrição – A Sutileza do Elefante (por Lêda Lucia Spelta)”

  1. Texto maravilhoso,Leda ! Além de nos fazer mergulhar nas sensações como se estivéssemos em seu lugar, traz reflexões fundamentais ,princoialmente para os tempos atuais . Espero por outros !!

  2. Seu texto, além de bem escrito, trata de questões profundas como preconceito e sensibilidade, em como o ser humano pode ser espezinhado com ou sem a nossa percepção. Parabéns pela sua expressividade, você consegue transmitir com muita precisão tanto os fatos como as emoções, contagiando quem lê. Que novos textos venham!

  3. Eu já conhecia o filme, antes de termos à nossa disposição a áudio descrição
    Porém, acho que meu entendimento poderia ser melhor do que foi com uma audiodescrição como foi mencionado pela nossa amiga leda.

    • Certamente a audiodescrição faz toda a diferença e deveria ter mais relevância nas políticas governamentais. Mas só vale se tiver qualidade.

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